Mães de filhos neurodivergentes expõem renúncias e ausência de políticas públicas
Milhares de mulheres vivem rotina silenciosa e exaustiva e marcada pela renúncia à vida profissional
A maternidade segue sendo um ponto de ruptura na trajetória de milhões de mulheres. Nos últimos vinte anos, avanços significativos ocorreram em relação à presença feminina no mercado de trabalho, à ampliação de direitos e à inclusão da equidade de gênero na pauta pública.
No entanto, para mulheres que criam filhos com transtornos do neurodesenvolvimento, como o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a realidade continua distante da promessa de igualdade. Muitas delas vivem uma maternidade que exige dedicação exclusiva e silenciosa, em que a escolha entre seguir uma carreira ou oferecer cuidado integral se torna inevitável, e quase sempre solitária.
Janiere Fernandes sabe bem o que isso significa. Quando recebeu o diagnóstico de autismo da filha, viu-se diante de uma decisão que alteraria completamente o curso da própria vida. Ela conta que abandonou projetos profissionais e rotinas de trabalho para priorizar os cuidados da filha. As terapias se tornaram parte do cotidiano, e o acompanhamento constante passou a ser a prioridade absoluta. Ao optar pela dedicação total, Janiere relata que a filha apresentou progressos notáveis no tratamento, como a redução no nível de suporte necessário. Ainda assim, o custo dessa escolha, financeiro, emocional e social, é alto e, na maioria das vezes, invisível.
A expressão “mãe atípica” se tornou comum entre mulheres que criam filhos neurodivergentes, mas o termo esconde a complexidade de um cotidiano marcado por jornadas exaustivas, ausência de apoio do Estado e pouca compreensão coletiva. A rotina dessas mulheres é ocupada por compromissos com terapeutas, consultas médicas, ajustes escolares e adaptações constantes dentro de casa. Sem rede de apoio e diante da rigidez do mercado de trabalho, a presença profissional se torna inviável. A consequência imediata é o abandono da carreira, e o impacto se estende para a economia e para a construção de políticas públicas efetivas.
Segundo a fonoaudióloga Tatianna Wanderley, especialista no atendimento a crianças com autismo, o diagnóstico traz consigo uma exigência prática: reorganizar completamente a vida da família. Na maioria dos casos, essa reorganização recai sobre as mães. São elas que deixam o emprego, cancelam planos e assumem a responsabilidade integral pela evolução do filho. Esse padrão, segundo ela, aprofunda desigualdades e cria barreiras que impedem essas mulheres de retornar ao mercado com autonomia e estabilidade.
A ausência de diálogo amplo sobre neurodivergência também contribui para o isolamento dessas famílias. Janiere aponta o silêncio social como um dos principais entraves para o avanço da causa. Para ela, o estigma que envolve o autismo ainda impede que muitas mães falem abertamente sobre os desafios que enfrentam. Essa falta de visibilidade dificulta o reconhecimento das necessidades específicas da maternidade atípica e, por consequência, retarda a criação de iniciativas efetivas de suporte.
No campo legislativo, há movimentos em andamento. Um deles é o Projeto de Lei 4062/24, atualmente em debate na Câmara dos Deputados. O texto propõe a criação do Programa Nacional de Emprego e Apoio para Mães Atípicas, com o objetivo de facilitar a inserção e permanência dessas mulheres no mercado de trabalho, levando em conta suas responsabilidades com o cuidado integral dos filhos. A proposta contempla medidas como apoio psicológico, flexibilização da jornada laboral, capacitação profissional e campanhas de conscientização.
Apesar de considerada positiva por especialistas, a medida ainda suscita dúvidas quanto à viabilidade de sua implementação. Tatianna Wanderley destaca que muitas mães não contam com qualquer rede de apoio, não há familiares próximos ou parceiros disponíveis para dividir o cuidado. Sem uma estrutura segura e acessível, elas não conseguirão sair de casa para trabalhar, independentemente das políticas anunciadas. Para que qualquer programa funcione, segundo ela, é indispensável que o poder público compreenda a realidade concreta das famílias atípicas e crie condições práticas que permitam a essas mulheres retomarem sua trajetória profissional com dignidade e segurança.
A maternidade atípica não é apenas uma experiência individual. É uma questão coletiva, que envolve direitos, estrutura social e a forma como a sociedade compreende e responde à diferença. Enquanto permanecer invisível, continuará cobrando um preço alto demais de quem cuida, e impedindo que o cuidado seja, de fato, uma responsabilidade compartilhada.



