Escavações resgatam corpos de 796 crianças em vala comum na Irlanda
A casa, administrada por freiras católicas, acolhia mulheres grávidas solteiras em nome do Estado e da Igreja, em um contexto social onde a maternidade fora do casamento era tratada como pecado
Depois de mais de 60 anos de silêncio, a Irlanda iniciou nesta segunda-feira (14) um processo que busca reparar uma das feridas mais profundas de sua história recente. Equipes de arqueólogos e peritos forenses deram início às escavações no terreno onde funcionava o St Mary’s Mother and Baby Home, na cidade de Tuam, no oeste do país, com o objetivo de localizar os restos mortais de 796 crianças que morreram na instituição entre 1925 e 1961.
A casa, administrada por freiras católicas, acolhia mulheres grávidas solteiras em nome do Estado e da Igreja, em um contexto social onde a maternidade fora do casamento era tratada como pecado. Nessas condições, milhares de crianças nasceram, mas muitas delas não sobreviveram à negligência, à fome ou a doenças evitáveis. As que eram consideradas “apresentáveis” eram separadas e entregues para adoção, enquanto outras acabavam em valas comuns, sem sequer um funeral.
A realidade do abrigo permaneceu por décadas oculta, até que a historiadora Catherine Corless encontrou centenas de certidões de óbito sem registros de sepultamento, revelando uma tragédia esquecida. A investigação provocou a criação de uma comissão de inquérito, um pedido de desculpas oficial do governo e, agora, o início da escavação oficial.
“Muitas famílias carregam esse luto há anos, sem saber onde seus parentes foram enterrados. É um passo importante para, enfim, dar a essas crianças o respeito que lhes foi negado”, afirmou Corless.
Embora os trabalhos fossem previstos para começar em 2019, obstáculos legais adiaram a iniciativa. A legislação necessária só foi aprovada em 2022, permitindo a atuação de uma equipe formada por 18 especialistas de diversas partes do mundo, incluindo Reino Unido, Espanha, Colômbia, Estados Unidos e Austrália. A previsão é de que as escavações durem até dois anos.
O esforço tem como meta recuperar, identificar e entregar os corpos às famílias, além de garantir que todos recebam sepultamentos dignos, encerrando um ciclo de omissão e abandono institucional.
O caso de Tuam não é isolado. Segundo um relatório divulgado em 2021, cerca de 56 mil mulheres e 57 mil crianças passaram por 18 instituições semelhantes entre 1922 e 1998, e ao menos 9 mil crianças morreram nessas casas, vítimas de um sistema que impunha castigo e exclusão social.
As primeiras evidências de enterros irregulares no terreno do abrigo surgiram em 1975, quando restos humanos foram encontrados durante obras. À época, a justificativa oficial foi que se tratavam de vítimas da Grande Fome Irlandesa do século XIX — algo que, com o tempo, se mostrou inverídico.
Agora, a escavação busca devolver, mesmo que tardiamente, um mínimo de dignidade e reconhecimento a essas vidas perdidas no esquecimento.



