Inimigo invisível

Falta de incentivo em pesquisas dificulta conhecimento de causas da microcefalia

Paraíba registrou 12 novos casos da doença entre 2018 e 2019.

Raquel Alves desperta todos os dias junto com o sol para cuidar do único filho, com quem mora em um condomínio residencial na periferia de João Pessoa. Assim como qualquer criança com três anos de idade, Nícolas exige atenção e carinho, entre incontáveis outras obrigações.

Mas não é só isso. O menino nasceu com microcefalia, uma malformação congênita neurológica, que causa deficiência intelectual, dificuldade na cognição e no desenvolvimento locomotor. Raquel, atualmente com 30 anos, vive integralmente em função da vida do filho.

Todos os dias antes das 8h, o menino tem a companhia da mãe nas sessões de fisioterapia, fonoaudiologia, exames e diversos tratamentos em ambientes públicos de apoio a crianças especiais.

Sem ajuda do pai da criança ou qualquer outro parente, Raquel abandonou o emprego de operadora de caixa para não desistir de buscar os melhores tratamentos para o menino. No banco de espera dos avanços nas pesquisas da doença sentam apenas mãe e filho.

  • Raquel Alves e filho

"Eu abri mão de tudo para só cuidar do meu filho. Deixei o trabalho e passei a dedicar minha vida totalmente a ele"

Raquel Alves - Dona de casa

A fonte de renda da família é apenas o valor de um salário mínimo oferecido pelo governo como benefício à criança. Com poucos recursos, atualmente Nícolas frequenta lugares que ofertem tratamento gratuito, como a Fundação Centro Integrado de Apoio à Pessoa com Deficiência (Funad), o Centro de Referência Municipal de Inclusão para Pessoas com Deficiência, o Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha e um centro universitário privado da capital.

+ Mais de 40% das paraibanas que cuidam de crianças com microcefalia se sentem sobrecarregadas

Segundo Renata Nóbrega, secretária executiva da Saúde na Paraíba, é preciso dar assistência às crianças para possibilitar qualidade de vida. No estado, os Centros Especializados em Reabilitação (CER) e a Funad têm esse papel. "São políticas que envolvem educação, moradia, tantas outras necessidades para garantir a qualidade de vida dessas crianças", disse.

Outras intervenções para a saúde de Nícolas são oferecidas de forma voluntária por instituições de ensino ou pesquisadores, como a doutoranda em Enfermagem, Tarciane Marinho. Mesmo como objeto de estudo, Raquel abraça possibilidades de novos tratamentos para o filho oferecidos por universitários, na esperança de avanço na saúde do menino.

A estudante da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) analisa os estímulos oferecidos pelo tratamento de cinoterapia, método que utiliza cães ou outros animais em sessões de terapia de pacientes. "Estudos comprovam que o cão é uma das únicas espécies que conseguem traduzir as emoções humanas e por conta disso ele é uma excelente ferramenta no tratamento. Estímulos sensoriais, o cheiro, a imprevisibilidade são alguns dos fatores presentes neste método", revelou.

As análises feitas em seis sessões fazem parte do projeto de doutorado da pesquisadora. Neste período, houve melhora na postura, na estimulação sensorial, abertura espontânea de mãos e no controle cefálico. Além de Nícolas, outras onze crianças realizaram o tratamento como objetos do estudo. Tarciane acredita que a falta de incentivo financeiro inviabilizou resultados melhores na pesquisa. Apesar de ter ficado na terceira colocação na seleção de bolsas de auxílio ofertadas pelo Ministério da Educação (Mec), o dinheiro nunca chegou. "Eu não tenho financiamento nenhum, é tudo recurso próprio", afirmou.

Para a estudante, a falta de recursos limitou a qualidade da pesquisa. Faltou verba para aquisição de livros para apoio às pesquisas e transporte dos pacientes carentes, que muitas vezes faltam às sessões por não terem como se locomover. A pesquisadora que também atua na atenção básica em um Programa de Saúde da Família (PSF) da capital acredita que sem incentivo não há como surgir mais pesquisadores. "Só consegui concluir o mestrado porque tive bolsa de incentivo na época, mas hoje, só estou conseguindo cursar o doutorado porque já tenho fonte de renda", revelou.

Entre 2015 e 2016, o surto nos casos de microcefalia assustava mulheres grávidas que absorviam conteúdos na mídia sem aprofundamento, sobretudo pela ligação do Zika Vírus com a doença.

Após ver uma reportagem na TV, Raquel recordou os sintomas que sentiu no início da gestação e procurou a médica que a acompanhava durante o pré-natal. "Tive febre e dores pelo corpo. Quando vi a matéria na televisão senti no meu coração que meu filho nasceria especial", disse.

A possibilidade de que Nícolas nasceria com microcefalia surgiu apenas no sétimo mês de gravidez. A certeza dos médicos só confirmou-se após o parto. "Minha vida mudou totalmente do dia para a noite. Era o meu primeiro filho e não havia sido planejado", conta.

NOVOS CASOS

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O caso de Nícolas está entre os quase 200 registrados nos primeiros anos do surto na Paraíba. Mesmo com a epidemia aparentemente contida, o campo científico ainda é carente de respostas sobre diagnósticos profundos e novos casos insistem em aparecer.

Pesquisadores na UFPB questionam as razões da malformação do cérebro nas crianças. A descoberta do Zika vírus foi relacionada à superinfecção em 2015, no entanto, passado esse período, crianças nasceram com o vírus detectado no sangue, mas sem microcefalia. "Existem questionamentos porque não é todo mundo que acredita nas razões apresentadas. Não existem provas, uma vez que não temos análises clínicas de todo mundo naquele período de grande infecção", disse a pediatra da instituição, Juliana Soares.

Atualmente, entre as formas de diagnósticos, exames laboratoriais para detectamento de Zika ou STORCH e exames de imagem (ultrassom, tomografia e ressonância) são apresentados como critérios para confirmação da doença.

Gráfico de Crianças com Microcefalia

Dados fornecidos pela Secretaria de Estado da Saúde ainda revelam o diagnóstico de recém-nascidos com microcefalia após o surto. Entre 2015 e 2016, foram registrados 176 casos no estado; em 2017 os números verificados pelo órgão apresentaram queda, anotando 7 casos; já entre 2018 e este ano, os números voltaram a crescer e já somam 12 diagnósticos. Como apresenta o registro fornecido ao Portal T5.

Apesar dos casos de crianças com microcefalia terem diminuído nos últimos dois anos, o Zika Vírus foi diagnosticado em 16 gestantes em 2019, conforme a Secretaria de Estado da Saúde. As grávidas com registro da doença passam por acompanhamento no pré-natal até o nascimento da criança. "O que é preocupante é a confirmação do diagnóstico. Aproximadamente 80% das mulheres que têm zika não apresentam sintomas. Às vezes só apenas uma febre fraca", relatou a especialista.

Pesquisas apontam que a infecção transmitida pelo mosquito não é a única maneira de contrair microcefalia, outro fator que pode ocasionar malformação são doenças na mãe detectadas no pré-natal. As STORCH são infecções causadas por sífilis congênita, toxoplasmose congênita, rubéola congênita, citomegalovirose congênita ou herpes simples congênito, que acometem o bebê quando infectado, nesses casos o vírus passa para o bebê e causa lesão cerebral.

De acordo com a especialista, a preocupação de novos casos existirem acontece pela falta de políticas públicas e incentivos em pesquisas na área. "O Ministério da Saúde apenas pede a notificação desses recém-nascidos que tenham algum defeito na cabeça para ficarem vigiando, mas não há nenhuma ação que monitore a Zika, Chikungunya e Dengue nas gestantes, mas era para existir", explica a médica.

Para as pesquisaram avançarem, existe a necessidade de testes ao menos nas áreas endêmicas, que são os estados do Nordeste onde apresentaram grande índice dos casos, como Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Bahia. Segundo o grupo de especialistas da UFPB, não há ação relacionada a monitoramento e a prevenção da microcefalia. "O Ministério da Saúde não deu oportunidade para continuar investigando a microcefalia no estado. Tentamos dar respostas, mas sequer financiamento de bolsa para CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) existe mais", reclamou a professora.

Atualmente, a médica lidera um grupo de pesquisa em estudos em neuroestimulação em crianças com microcefalia, mas esbarra na falta de incentivo: "Dentro da universidade há muitos projetos de estudo para análise da microcefalia, mas não existe bolsa. Como estimular um alunos com uma bolsa de R$ 400? Imagine sem ela?".

Após o contingenciamento anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) no fim de abril, das 1.211 bolsas dos pós-graduandos da UFPB, 290 foram cortadas, sendo 185 de mestrado e 105 de doutorado. Ou seja, praticamente 24% dos incentivos para a pós-graduação de todos os cursos foram perdidos.

"Todos que fazem pesquisa foram prejudicados"

Juliana Soares - Médica

As pesquisadoras recebem bebês nascidos no Instituto Cândida Vargas em um espaço da UFPB todas terças-feiras. O projeto realiza tratamento ligado à neuroestimulação gratuitamente de 25 crianças com microcefalia. "Não havia pediatras que acompanhassem os recém-nascidos, então me envolvi muito no processo, acabei sendo voluntária do projeto. Começamos a ver que existia essa necessidade porque elas estavam sendo tratadas, mas não investigadas." explicou.

Reduzir as convulsões e o desenvolvimento da atividade motora estão entre os benefícios de uma técnica produzida em solo paraibano, com apoio de universidades estrangeiras, e que será oferecida pelas profissionais. Um neuroestimulador que impulsionará a cognição de 19 pacientes, durante quatro anos, está em fase de testes finais.

VACINA EM TESTES

Em nota o Ministério da Saúde informou que, desde o início das investigações, em outubro de 2015 até 2018, foi notificado sobre 17.041 casos suspeitos de síndrome congênita do Zika, incluindo a microcefalia, dos quais 2.133 (12,5%) foram excluídos, após criteriosa investigação, por não atenderem às definições de caso vigentes no país.

Do total de casos notificados, 2.612 (15,3%) permanecem em investigação. Quanto aos casos com investigação concluída, 7.835 (46,0%) foram descartados; 3.332 (19,6%) foram confirmados; 643 (3,8%) foram classificados como prováveis para relação com infecção congênita durante a gestação e 486 (2,9%) como inconclusivos, conforme o Boletim Epidemiológico fornecido à reportagem.

Sobre as ações, a pasta revelou que as atividades ocorrem em conjunto com estados e municípios, tratadas como prioridade pelo Governo Federal. "A execução das ações de prevenção, como visitas dos agentes de endemia para eliminação dos criadouros, é de responsabilidade dos gestores locais. No entanto, todas as ações são gerenciadas e monitoradas pela Sala Nacional de Coordenação e Controle, junto com as 27 Salas Estaduais e as Salas Municipais instituídas".

O Portal T5 questionou o investimento em pesquisas da relação do Zika Vírus com a microcefalia, mas o Ministério da Saúde se limitou a responder apenas que "se comprometeu, desde novembro de 2015, com mais de R$ 320 milhões para o desenvolvimento de vacinas e novas tecnologias na área. Em 2016, a pasta encaminhou R$ 100 milhões ao Instituto Butantan (São Paulo) para custeio da terceira e última fase da pesquisa clínica da vacina da dengue. A vacina contra os quatro sorotipos da dengue, em dose única, está na 3ª e última etapa de testes em humanos". A pasta não informou sobre investimentos em pesquisas científicas nas universidades do Nordeste, como a UFPB.

Enquanto os avanços nas investigações das causas da microcefalia seguem a passos lentos, a mãe de Nícolas, assim como tantas outras, encontra esperança e reabastece as forças com ajuda de profissionais de saúde e pesquisadores da área, que levam alento as famílias, mesmo com pouco incentivo e estrutura. "Tem hora que bate o desânimo, o desgosto, mas eu sou muito persistente, me apego com Deus. Numa rotina dessa, eu durmo e reponho minhas forças, acordo renovada. Tem que ter força para lutar!", acrescentou Raquel ao fim da conversa.

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